O que fazer com os restos? Tanto no sentido social como no sentido pessoal, eles podem ter caminhos diversos: viram entulho e ficam ali, sufocando a vida da gente, entupindo as cidades. Viram lixo que tenta-se jogar fora, para se ver livre. Mas acaba que o mal-cheiro persiste, pedindo uma solução. Os lixões das cidades mostram o resultado desta mera transferência do que é indesejável de um lugar pra outro: o problema continua a clamar por um encaminhamento, continua causando problemas.
Mas os restos podem ser reciclados, resignificados e virarem outra coisa. Podem ser transformados em matéria prima nas reciclagens e podem até tornarem-se obras de arte.
Um exemplo incrível disso é o documentário Lixo Extraordinário, dirigido pelo brasileiro João Jardim e a inglesa Karen Harley. O filme é candidato ao Oscar de melhor documentário do ano. Tem-se a emoção de assistir, mais que isso, de ser tomado pela beleza da sensibilidade do artista de transformar o lixo em obra de arte. O documentário acompanha o trabalho do mundialmente reconhecido artista brasileiro Vik Muniz que decide retornar ao estado do Rio de Janeiro, sua cidade natal e contribuir para transformar a vida das pessoas envolvidas com o lixão de Gramacho, localizado em Duque de Caxias e considerado o maior aterro sanitário do mundo.
Num trabalho de pesquisa-ação, Vik Muniz envolve-se com as pessoas que vivem no e do lixo e junto com elas constrói obras de arte, a partir da vida delas e tendo o lixo como matéria prima. Esta interação permite que essas pessoas saiam do lugar passivo de vítimas da pobreza e do lixo, para o papel de protagonistas de uma obra de arte e que resulta numa transformação na vida delas. Vik Muniz, num trabalho de construção, transforma junto com elas aquilo que era ordinário, no sentido pejorativo da palavra, em algo extra, que vai além, muito além.
Parece um pouco com o trabalho analítico, que também visa dar um giro e permitir que o analisante possa transformar, reposicionar-se diante daquilo que constitui o seu fantasma, a pedra do seu sapato, em outra coisa. O ato criador e o ato analítico tem este traço em comum, como diria Lacan, fazem do lixo, um luxo
Tomara que o mundo hollywoodiano reconheça este trabalho. Mas, se não reconhecer, algo já foi colocado em movimento. Não há mais volta. Também é assim o trabalho na psicanálise
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